quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Voltando à educação

Eu havia criado esse blog para falar sobre história e docência. Porém quando pisei na sala de aula tive uma decepção tão grande que larguei o blog, meus estudos de história e a sala de aula.
Pensei seriamente em nunca mais pisar em uma sala de aula outra vez. Nem meu diploma eu conseguia olhar como conquista. Ele era a prova de que eu havia jogado quatro anos de minha vida fora.
Porém com o tempo fui enxergando um pouco a realidade. Voltei para a sala de aula, para os estudos, e agora quero seguir em frente e nunca mais desistir. Pretendo dividir experiência de docência nesse blog.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Currículo, cultura e relação de poder

CURRÍCULO, CULTURA E RELAÇÃO DE PODER.
Diana Lima Pereira

Resumo

Esse presente trabalho tem como foco a relação entre currículo, influências neoliberais e reivindicações das “minorias”, abordando os conceitos de identidade e diferença, com os conceitos homogêneos e hegemônicos. Pois a globalização traz consigo a tendência de homogeneizar a cultura do que se chama de “aldeia global”, “escolhendo” o que é a cultura hegemônica. Por outro lado reconhecem-se a importância de problematizar a existência do diferente e entender o diferente e a identidade não como duas tendências essenciais e sim fragmentadas e construídas. Como o currículo faz a seleção do que deve ser ensinado pelas escolas é importante ele ser elaborado sobre a perspectiva de se construir sujeitos ativos que saibam valorizar a dignidade humana.
Palavras chave:
Currículo, neoliberalismo, globalização, identidade e diferença

Introdução: o que é currículo?
O currículo é uma transposição didática, onde o conhecimento produzido pela sociedade transforma-se em cultura escolar. Desde o período da “redemocratização” o Brasil, com - influências internacionais- está reescrevendo seus PCNs. Preocupado com o papel a ser desempenhado por cada disciplina. Porém se na teoria o currículo nacional não é obrigatório, na prática é ele que determina as avaliações e os livros didáticos. “Há, no entanto um grau de autonomia das instituições escolares e dos professores que possibilita a seleção dos conteúdos, sendo salutar que às escolas tenham espaços de estudo e de discussão do que está sendo proposto pelos PCNs, tanto para seguir como para rejeitar.” (Libâneo). Mas como é ressaltado pelo próprio autor, o professor se acomoda pelo currículo (no caso o livro didático).
O currículo pode ser entendido como a forma de se socializar crianças e jovens de acordo com valores tidos como desejáveis (Moreira. 1997). É necessário fazer a definição da palavra currículo. Cito aqui algumas definições discorridas por Moreira:
a) Conhecimento escolar e experiência de aprendizagem: entende-se o que deve ser compreendido e aplicado pelo aluno. Essa perspectiva trás dois questionamentos: “O que deve um currículo conter? Como organizar esses conteúdos?”
b) Ênfase nas diferenças individuais dos alunos. A escola torna-se o ambiente em ação para as experiências totais dos alunos.
c) Influência da pscicologia: nesse caso o Behaviorismo.
d) Reconhecimento de que currículo não acarreta apenas a parte escrita, mas também a prática escolar efetiva. Distinguindo então o currículo formal (criado pelo poder estatal), currículo real (o que efetivamente é realizado em sala de aula, e a interação entre professor e aluno), e currículo em ação.
e) O conceito de currículo oculto, no qual é valorizada a interferência que o professor realiza no currículo. Esta concepção vai além do reducionismo marxista da escola como reprodutora e fixadora dos valores de divisão de classe, uma vez que a escola “é o espaço no qual se travam lutas ideológicas e políticas, passível, portanto, de abrigar intervenções que visem a mudanças sociais.
f) Influência do pós-modernismo. O currículo como campo de identidades e subjetividades.

Desenvolvimento: currículo, globalização e utopia.
No Brasil são fortes as tendências vindas do exterior. No caso da disciplina história a maior interferência vem da França. Essa orientação internacional se embasa nos pressupostos construtivistas, que nortearam também os países latino americanos.
Vários autores como Bittencourt, Libâneo, Silva e Fonseca concordam que há no currículo relações de poder.
... concebemos currículo como uma construção, um campo de lutas, um processo, fruto da seleção e da visão de alguém ou de algum grupo que detèm o poder de dizer e fazer. Logo, o currículo revela e expressa tensões, conflitos, acordos, consensos, aproximações e distanciamentos. É histórico, situado, datado no tempo e no lugar social. (SILVA E FONSECA, 2007. p.44).

Há forças ideológicas no currículo além de interesses capitalistas. Concordamos com Bittencout quando esta diz que as reformulações curriculares atendem a nova configuração mundial “para submeter todos os países a lógica do mercado”. Os países periféricos têm o desafio de se “enquadrar” no novo contexto mundial. Para que os integrantes da sociedade sejam capazes de sobreviver no capitalismo neoliberal, torna-se necessário que tenham amplos domínios do conhecimento.
A globalização trouxe o modelo econômico do neoliberalismo, onde o livre mercado reina. A estranha lógica do mercado submeti tudo e todos. Inclusive os currículos. Estes abordam a necessidade de formar futuros trabalhadores competentes. Quanto melhor a formação, melhor será o emprego e consequentemente o status. A escola virou um bem de consumo, e influenciada pela competitividade, escolas disputam quem classifica mais alunos nos vestibulares das melhores universidades. Procura formar sujeitos aptos á armazenar informação e não compreender problemas humanos.
Quem também obtém demasiada influência nos currículos é o discurso pós-moderno. Entre as principais mudanças estão:
(a) o abandono das grandes narrativas; (b) a descrença em uma consciência unitária, homogênea, centrada; (c) a rejeição da idéia de utopia; (d) a preocupação com a linguagem e com a subjetividade; (e) a visão de que todo discurso está saturado de poder; e (f) a celebração da diferença. (Moreira, 1997. Página 10)

Para Moreira a rejeição da idéia de utopia seria nociva á educação. O autor sugere o não abandono total do modernismo. Utilizando assim a idéia de otimismo e utopia na educação. Porém, ao discorrer sobre utopia, não cai na idéia reducionista de um mundo social e político imaginário e perfeito. É clara a recusa pela metanarrativa para se conquistar o modelo utópico de sociedade. A conquista da utopia aconteceria apenas com a capacidade de se retirar a hierarquia presente das duas ciências (naturais e sociais). É necessária a valorização do senso comum, ou seja, não enaltecer apenas as ciências como a única fornecedora de verdades, reconhecendo assim as inúmeras formas de conhecimento. Rejeitam-se as práticas hegemônicas. O que ganha realmente destaque é a dignidade humana. E é esse princípio que deve ser valorizado pelas culturas.
Seguindo também a tendência da globalização, está na moda nos textos acadêmicos a palavra multicultural. Para Santos e Lopes multiculturalismo é uma expressão indefinida, o que dificulta a sua compreensão, sendo até mesmo, em alguns países como os Estados Unidos, confundido com interculturalismo. As distinções dos prefixos “multi” e “inter” se dariam porque o primeiro é limitado á valorização das diferenças. Por outro lado o interculturalismo seria mais abrangente, preocupando-se com a troca e interação.
O sentido é de que, ao entrar em interação com as outras culturas, uma dada cultura poderá se desestabilizar ou ser relativizada e até mesmo contestada em seus princípios básicos, expondo-se à crítica e à autocrítica, o que possibilita a eliminação dos aspectos negativos presentes nas diferentes tradições culturais. (Santos e Lopes.2006. pagina 35)
Santos e Andriolli falam sobre a desvalorização das disciplinas de humanas em comparação com as exatas e biológicas. Por outro lado houve a valorização da “sociedade do conhecimento”, no qual entre outras coisas se exigem habilidades intelectuais mais complexas.
Com a globalização as salas de aula estão ficando heterogêneas, é dever do professor respeitar a individualidade do seu aluno. Além do mais a mídia traz imagens de outros povos, outras culturas, outras religiões. Estamos vivendo a cultura da imagem , no qual o professor deve tomar cuidado para não ser apenas um transmissor das informações estereotipadas trazidas pela mídia. Ou seja, muitos professores no intuito de renovarem suas aulas procuram técnicas diferentes, porém a metodologia de transmitir um conhecimento já formado ainda continua.
Como fora citado acima, currículo é uma transposição didática do conhecimento e da cultura humana. Dessa forma há uma reelaboração dos conteúdos culturais. “Nesse processo de seleção, a escola termina por trabalhar apenas com uma parcela restrita da experiência coletiva humana”. (Santos e Lopes. 2006. página 36). Isso significa que culturas são marginalizadas do conteúdo escolar, sendo eliminada e devendo ser substituída pela cultura hegemônica (identidade).
Se por um lado os currículos sofrem a influência do neoliberalismo, para formar sujeitos aptos, competentes, que saibam ter informações, por outro há grupos que reivindicam ter sua história contada. Desde o processo de redemocratização da década de 80, houve a preocupação de que todos participassem do processo político. Há necessidade em formar sujeitos ativos, que saibam compreender a sociedade no qual estão inseridos, para desse modo ser dono de suas ações, ao contrário do sujeito passivo.
Há então a necessidade de reconhecer o espaço escolar para dar voz aos oprimidos, indo além do reconhecimento e valorização das diferenças culturais. Mas também para a problematização e questionamento do que seriam essas diferenças e como elas se formaram. Deve-se também identificar o conceito de multiculturalismo, para não cair em equívocos como ressaltam Santos e Lopes, de aceitar uma cultura dominante que pode assimilar as desprivilegiadas.
O termo multiculturalismo demonstra preocupação com a diversidade geográfica, racial, religiosa, política entre outros.
O conceito é utilizado também para expressar a defesa de um caminho mais flexível para a escola que se pretende aberta aos saberes do cotidiano, inserida no espaço do multi, do pluri. O professor, nesse contexto multicultural, “deve” está além dos territórios e dos limites que o saber especializado representa no contexto da escola. Assim, “deve” ter a capacidade de interdisciplinarizar, de integrar, de incluir em contextos específicos os sujeitos e os saberes dos excluídos: negros, índios, pobres, homossexuais, portadores de deficiências físicas, mentais e outros. (SILVA E FONSECA, 2007.p. 45)

Nota-se que no contexto multicultural o Estado e algumas instituições estão preocupados com as “minorias”, de valorizá-las. Havendo uma preocupação em apresentar a escola “como um espaço de acolhimento, inclusão, respeito, de ‘resgate’ de identidades e culturas múltiplas.” (SILVA E FONSECA, 2007.p.45). Os PCNs são influenciados com a introdução de temas transversais como “ética” e “pluralidade cultural”.

A questão da identidade e da diferença:
Mas não se deve esquecer o caráter, talvez ingênuo, do termo multicultural. Isto é, este traz consigo dois termos politicamente corretos: respeito e tolerância, mas se não questionados tornam-se vagos, apenas reforçando que existe um diferente para ser tolerado. Tadeu da Silva levanta a questão se essa pedagogia da tolerância e respeito pelo diferente é suficiente para servir de base para uma pedagogia crítica e questionadora. É importante que esse aluno saiba ver o outro não como algo natural, em sua essência, mas como uma produção social, com relações de poder. O diferente, não é uma essência pacífica da cultura, é uma construção. O outro cultural é sempre um problema, pois coloca permanentemente em xeque nossa própria identidade.
É necessário questionar a construção da identidade e diferença. Identidade é dizer o que se é e o que não se é. Afirmo ser algo para deixar claro que não sou outra coisa. Exemplo: “sou católica”, ou seja, “não sou evangélica, não sou mulçumana”. Deve-se perceber que identidade depende da diferença e vice e versa. O diferente serve para dizer aquilo que ele é, o que ele não é. Essa relação identidade e diferença podem ser mostradas no que Bhabha fala sobre “eu - outro”. Isto é, “eu” como ser que possui a identidade, devo respeitar e tolerar o “outro”, aquele que é diferente.
Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. Por sua vez, na pespectiva que venho tentando desenvolver, identidade e diferença são vistas como mutuamente determinadas.” (TADEU DA SILVA, ano. P. 76)


Como a identidade é aquilo que se deve ser, isto é, a “norma padrão”, a diferença apresentar-se-ia como o reflexo. Porém é necessário que ambos sejam compreendidos como produções. Isso significa que não são naturalmente colocados. Ao contrário são interdependentes e criações lingüísticas. “A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzida” (TADEU DA SILVA, ano. P. 76). São criadas por meio de atos de linguagem, pois identidade e diferença devem ser nomeadas. Porém essa nomeação não é simples, seu aspecto não é apenas gráfico ou fonético. Há tanto o conceito, como uma cadeia de conceitos que o permeiam. Quero dizer que, sistemas simbólicos e culturais que compõem o que distingue identidade e diferença e não aspectos culturais. “Dizer isso não significa, entretanto, dizer que elas são determinadas, de uma vez por todas, pelos sistemas discursivos e simbólicos que lhes dão definição”. Para Tadeu da Silva a linguagem não é estável, ela vacila.
Hall apresenta três concepções distintas de identidade, que são: sujeito do iluminismo; sujeito sociológico; e sujeito pós-moderno. O primeiro é centrado, fixo e masculino. É o homem no centro (laicizado) racional, o que está ciente da vinda do progresso. O segundo faz abordagem da interação com o meio. O sujeito não é mais o que é (essência), ou apenas o que é. Ele também é o seu meio. Esse sujeito “nasce” na primeira metade do século XX.
Mas o sujeito que importa aqui é o sujeito pós-moderno. Pois se percebe não ser fruto de sua essência, com características pré moldadas. Exemplo: o oriental é exótico, ignorante, atrasado. O sujeito agora é definido historicamente e não biologicamente. Ele vive (confuso) com várias identidades. É partido, dividido, ao mesmo tempo em que:
Ele vivencia sua própria identidade como se ela estivesse reunida e “resolvida”, ou unificada, como resultado da fantasia de si mesmo como uma “pessoa” unificada que ele formou na fase do espelho. (HALL. 1992. pagina 38)

A identidade não é algo acabado, ela está em processo. Existe sempre uma procura para podermos construí-la.
A globalização traz duas conseqüências culturais, que é a homogeneização da cultura e a cultura hegemônica. O primeiro significa a cultura única, igual, enquanto que o segundo “escolhe” qual a cultura ideal a ser “copiada”. Ameaçando assim a afirmação cultural de diferentes grupos.
Da mesma forma, a globalização da cultura é uma estratégia importante, no plano econômico, uma vez que cria condições para a produção de mercadorias compatíveis com interesses e gostos de consumidores de todo o planeta. (Santos e Lopes. 2009. página 31).

Hall nos adverte sobre estados nações que são compreendidos com pureza tradicional. Na realidade estes seriam imaginados. “A identidade nacional é uma comunidade imaginada”. Sendo assim as diferenças entre nações surgem das formas pelo qual essas diferenças são imaginadas. Ao ser criada a diferença entre nações, entende-se que há uma nação identidade, a que teria a cultura hegemônica. Tornando as outras nações em diferentes. Essa concepção acaba por transformar (ou tentar transformar) as nações em homogêneas, como se não houvesse conflitos culturais e étnicos nelas. Ou seja, como se cada nação tivesse sua identidade definida e uma essência.
A globalização traz consigo a superação das fronteiras pelo capital. Ao mesmo tempo em que se enfraquece o Estado Nação, sentimentos nacionalistas se reforçam trazendo confrontos. Muitas vezes havendo um reforço das tradições e a construção da identidade nacional que no intuito de se fortalecer e fixar-se constrói representações através de símbolos e um discurso, e com isso o sentimento de lealdade para com a nação. Surgindo então a essência da cultura nacional. Outro quesito influente é o discurso da cultura dominante, isto é, há uma cultura homogênea da nação, porém há divergências locais, étnicas, de gênero e raciais. Trazendo então a cultura hegemônica que subordina as demais através da mídia e do que Hall chama de instituição cultural (Sistema educacional Nacional), essa subordinação está mais presente na língua. Mesmo assim é evidente o fortalecimento da identidade local sobre a identidade nacional.

Conclusão:
Este presente trabalho teve a intenção de relacionar currículo com tendências e conflitos culturais e as relações de poder presentes nesse. Compreender como que as tendências globalizantes e o mercado neoliberal interferem na construção do currículo escolar para a criação de um sujeito capaz de se adequar ao mercado de trabalho. Há uma relação de poder presente nos currículos, uma vez que, este não está apenas objetivado em atender as exigências do mercado. Mas há uma luta entre as classes e grupos. Tendo cada vez mais, necessidade dos grupos, tidos como excluídos da sociedade, em terem voz na construção curricular.
Nessa perspectiva, procurei abordar a noção de identidade e diferença, para poder relacioná-las ao currículo. Pois neste há a seleção cultural, o que é tido como identidade, como norma padrão, a parte necessária para a compreensão e apreensão do aluno pela escola. O diferente pode ser abordado com preconceito explícito ou não, sendo apenas diferente (inferior) ao que é identidade. O currículo deve ir além da celebração da diferença, ou ao seu consumo. Ao invés de simplesmente respeitá-lo deve-se compreender como se construiu a diferença, tentar conhecê-lo, não como algo exótico e questionar essa diferença. Pretende-se dessa forma, elevar a dignidade humana sobre valorização cultural. Pois assim o currículo poderá, de acordo com Moreira, ter capacidade utópica para a sociedade, excluindo as hierarquias do saber.

Bibliografia:

SILVA, Tomas Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/ Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

MOREIRA, Antônio Flávio (org.). Currículo: questões atuais. In: ________. Currículo, Utopia e Pós-Modernidade. São Paulo: Papirus, 1997. Cap. 1, p. 9-28.

MOREIRA, Antônio Flávio (org.). Currículo: questões atuais. In: ________. Globalização, Multiculturalismo e Currículo. SANTOS, Lucíola Licínio. LOPES, José de Souza. São Paulo: Papirus, 1997. Cap. 1, p. 9-28.

BITTENCOURT, Circe Maria F.Ensino de História: fundamentos e métodos. In: ________. História nas atuais propostas curriculares. São Paulo : Cortez, 2004. Cap. 3, p. 99-113.

HALL,Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 11ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOCHI, M. S. Educação Escolar: políticas, estrutura e organização. 1. Ed. São Paulo: Ed. Cortez, 2003.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Documentos não escritos em sala de aula. In: Ensino de História: fundamentos e métodos. Cortez Editora, 2004 p.353-382.

Artigo sobre educação e islã

Esse é um artigo que fiz no congresso de história na cidade de Jataí Goiás. Fala sobre a necessidade do papel da escola sobre problemas culturais. Abordando a visão ocidental sobre o oriente e o papel da mulher mulçumana.




RENOVAÇÃO CURRICULAR: A QUESTÃO DO OUTRO
O outro é uma questão de interpretação. Ele é diferente, exótico e até certo ponto tolerável. Multiculturalismo é o termo da moda, acompanhado de questões tão nobres quanto vagas que são respeito e tolerância pela diversidade e diferença. Porém essa tendência, mesmo que aparentemente honesta, coloca esse outro (“diferente”) como se estivesse naturalmente ali, pronto para ser tolerado. Tadeu da Silva levanta a questão se essa pedagogia da tolerância e respeito pelo diferente é suficiente para servir de base para uma pedagogia crítica e questionadora. É importante que esse aluno saiba ver esse outro não como algo natural, em sua essência, mas como uma produção social, com relações de poder. O outro, diferente, não é uma essência pacífica da cultura, é uma construção. O outro cultural é sempre um problema, pois coloca permanentemente em xeque nossa própria identidade.” (2000, p.97).
Ao se tornar um problema social, o outro também é um problema pedagógico e curricular. Inevitavelmente esse outro é encontrado, e excluí-lo e reprimi-lo do currículo não é saudável, uma vez que esse outro reprimido tende a voltar “explodindo em conflitos, confrontos, hostilidades e até mesmo violência.”( 2000, p.97). O currículo deve tratar a abordagem do outro como questão política. Como questões desse outro, diferente, são produzidas?
O currículo é histórico, e se interliga entre escola, conhecimento e sociedade. “O campo curricular pode ser entendido como um lugar de representação cultural, de avanços e retrocessos, de luta pelo poder, de multiculturas, de exclusão e de escolhas.” (Silva e Fonseca, 2007. p. 49). Há no currículo relações de poder. Em uma sociedade com forte influência neoliberal, o currículo tende a se preocupar em formar cidadãos competentes para o trabalho, mas por outro lado há grupos de minoria identitária, que exigem revisões curriculares. O currículo não é necessariamente uma forma de guiar o professor, pode ser criticado pelos sujeitos do processo educativo (aluno-professor).
O mundo pós-guerra fria é o mundo das mudanças de paradigmas. Tradições milenares são esquecidas e outras “teimam” em continuar. A mídia nos apresenta “freqüentemente uma desconhecida coberta dos pés a cabeça” (da Silva, 2008) povoando e incomodando o imaginário ocidental. Junto com ela notícias de homens bombas, guerras religiosas, levando o mundo cristão ocidental a ter uma visão conturbada e estereotipada desse mundo islâmico oriental. Espínola ressalta que a IV Conferencia Mundial sobre a mulher em Pequim (2005) tinha como tema central a violência contra a mulher. As imprensas brasileiras e francesas deram grande destaque ao mundo islâmico e a África, ignorando as violências sofridas no ocidente.
A história do Brasil está cada vez mais se deslocando da visão do homem europeu branco e cristão, estudando sobre os excluídos e também os diferentes. A cultura mulçumana é passada de forma estereotipada e às vezes discriminatória pela mídia, principalmente quando se trata de gênero. O educador deve retirar do educando a visão conturbada e generalizada da mulher exótica, passiva e transmissora de valores. Falar de multiculturalismo também nos leva a pensar em identidade, enquanto a sociedade ocidental vive a confusão do eu, o rompimento com o tradicional, algumas mulheres islâmicas vem em seus véus não submissão e sim identidade. A Palestina em sua luta nacionalista (ou terrorista) tem em seu meio, mulheres fiéis a religião e ao sentimento nacional, o véu é além de vestimenta a renda de muitas mulheres. Concordamos com Silva e Fonseca (2007) quando afirmam que as relações de gênero, classe e etnia são relações de poder, dessa forma o ocidente acaba por analisar a cultura islâmica com julgamento, comparações e generalização, o outro (mulçumano) é interpretado embasado nos conceitos ocidentais de “direitos humanos”. Nesse contexto a sociedade ocidental concebe a sociedade mulçumana como estranha: “Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável.” (Bauman,pag27). É freqüente a utilização de termos “nós” (ocidentais), “eles” (mulçumanos). Eu, outro. Crises de identidade, e necessidade de se auto afirmar são constantes no mundo atual. Uma tradição está sendo reescrita, em especial a tradição árabe-islâmica, que vê nos ideais modernistas e imperialistas o risco de sua própria identidade, chegando ao ponto de retroceder a condição feminista. A revolução islâmica no Irã, e a vitória dos mujahedeenn sobre a modernização comunista afegã deram mais força ao patriarcalismo islâmico, surgindo o termo neopatriarcal, que faz referencia á modernidade fracassada da família contemporânea árabe. Por outro lado nota-se avanços em relação á situação da mulher, mesmo que tímidos.
Falar sobre a mulher no islã implica vários outros temas como fundamentalismo islâmico. Porém o fundamentalismo não é totalmente vitorioso, discursos feministas penetraram no meio islâmico formando ONGs com apoios de homens e mulheres e ajudando a formar um “feminismo islâmico”. Está havendo uma tardia expansão da escolarização das meninas no oeste afegão. Além de países como o Marrocos cuja geografia e economia se ligam com a Europa está cada vez mais avançando em relação á mulher, porém com passos tímidos. Não apenas influências internacionais, mas também internas como a Salafya que é um movimento de reforma muçulmana nacionalista que teve início no século XIX, cujo grande avanço foi a campanha em favor da educação feminina (a taxa de analfabetismo das mulheres marroquinas é vergonhosa). Porém esse movimento ainda guarda certos limites, como por exemplo, dar status e respeito à mulher apenas dentro da instituição família. Mas se existem movimentos internos a favor da emancipação feminina torna-se equivocada a idéia de passividade. Ayann critica a atitude de intelectuais ocidentais, denunciando estes de descaso pela situação de mulheres islâmicas em nome de boa relação multicultural, ainda afirma que islã é mais que religião, é uma sociedade e ao contrário do mundo ocidental não passou pelo iluminismo, vivendo ainda paradoxos do século XVIII, não sabendo distinguir razão e religião. É bem severa em relação ao islã, principalmente ao livro sagrado, culpando-o pelas atrocidades cometidas contra as mulheres. Em seu curta Subimission, que fez com o cineasta Theo Van Goh, que fora assassinado por um fanático islâmico por causa do curta, é retratada a violência física-doméstica e a violência psicológica. Hajjami por outro lado responsabiliza a questão de inferioridade de gênero não nas escrituras, e sim nas culturas que aderiram ao islã com forte patriarcalismo, no qual interpretam o Corão para justificar sua cultura. A história marroquina, por exemplo, é descrita através dos homens, dando mais destaque a estes. Apesar de haver heterogeneidade entre as mulheres marroquinas, todas vivem sobre a cultura patriarcal islâmica- de acordo com Sadiq é importante saber diferenciar islã-fé de islã-cultura, o primeiro é a relação do indivíduo com Deus, e o segundo é a identidade do indivíduo, ou seja, mesmo que esse não seja mulçumano, ele se identifica com a cultura de seu país. A emancipação feminina seria uma ofensa ao status masculino. As mulheres são consideradas então, emotivas, más, fracas, trabalhadoras, obedientes e passivas.
Said, aborda a questão sobre como a arrogância e presunção do Ocidente, além do medo e ódio pelo mundo islâmico demonstra esse choque de civilização. Atraso, falta de democracia e supressão dos direitos das mulheres, são motivos para atacar as sociedades árabes e mulçumanas, esquecendo-se que conceitos como modernidade, democracia e iluminismo não são fáceis de apreender. Há uma idéia na qual apenas os Estados Unidos poderia “salvar” o mundo mulçumano da opressão e ignorância, como se o povo árabe-mulçumano não tivesse condições intelectuais de se definir, como se necessitassem da visão européia e estadudinense para que eles existam. O leste é reescrito pela historiografia ocidental para poder ser possuído. O mundo ocidental após as conquistas femininas, com as instituições família e igreja em decadência vê com estranheza uma cultura tradicionalista e patriarcal como a islâmica. Com estados teocráticos, versus estados seculares ocidentais.
Como o professor pode levar para seus alunos o ensino sobre a cultura islâmica em especial sobre a mulher islâmica? O islamismo possui mais de um bilhão e meio de adeptos pelo mundo todo, são 57 nações integrantes da Organização da Conferência Islâmica. São várias tradições interpretando de forma distinta o Corão. É uma cultura complexa, e para o professor abordá-la ele deve conhecê-la, ou seja, pesquisar. Zierer (2008) fala sobre a pesquisa como um caminho para a renovação do trabalho do professor historiador. Ultrapassar a dicotomia professor/pesquisador é necessário para que não se torne um mero transmissor do livro didático, que pode estar equivocado.
Fontes para mostrar para o aluno a situação da mulher islâmica, ou melhor, as faces das mulheres islâmicas não são poucas: o curta Submission: a mulher no islã, o livro de Kaled Hosseni “A Cidade do Sol” e o site da Rawa (Associação das Revolucionárias Feministas do Afeganistão). Mostrando violências sofridas pelas mulheres na cultura islâmica. O primeiro denuncia a própria religião, relacionando religião com violência contra mulher. Os outros dois denunciam o fundamentalismo e não a religião em si.
A edição 30 da revista eletrônica e feminista Pagu traz artigos, no qual defendem que o patriarcalismo é uma relação mais cultural do que religiosa. À medida que o islã se propagara, fora incorporando costumes de outros povos, como a mutilação genital, aceita por grande parte dos mulçumanos, mas sem ser citada no Corão. Esta prática tem por intenção a pureza da mulher, e a honra da família, pois desta forma o adultério seria evitado. Em 2008 o Egito tornou crime à mutilação de órgãos genitais.
Utilizando as fontes citadas acima (Subimission, a mulher no islã; A cidade do Sol; site da Rawa e revista Pagu) o professor estará levando para seus alunos uma pesquisa rica e complexa, podendo até mesmo levar o método dialético , ou seja, o confronto das teses opostas, para os alunos poderem construir suas idéias em relação ao outro (mulçumano). É interessante induzir o aluno a levantar problemas e a questionar. A contribuição do aluno pode ser interessante e não apenas as pesquisas do professor. Desse modo não iria apenas expor sobre a cultura islâmica e a condição de suas mulheres. “A sala de aula não é apenas um espaço onde se transmite informações, mas onde umas relações de interlocutores constroem sentidos.” (Schmidt, 2004). Aceitando o que os alunos têm a falar sobre essa cultura distante, o que eles sabem, sobre o que eles pensam. E a partir daí, construir conceitos e derrubar preconceitos.
Vivemos em uma cultura ligada á mídia, desse modo deve-se articular ensino e tecnologia. A televisão brasileira por vezes traz informações ligando o islã em seus aspectos negativos e espetaculares. Fechando essa religião e sua relação com as mulheres como arcaica e atrasada, esquecendo-se que o islã junto com o Corão trouxe para a mulher vantagens até então não concedidas pela Bíblia cristã e que durante o período das cruzadas a civilização islâmica é mais sofisticada intelectualmente e materialmente. Os alunos estão norteados por informações, e como relata Aïcha El Hajjami as questões sobre o islã são repassadas pela mídia com reducionismos e confusões conceituais. O professor não pode se deixar levar pela “cultura da imagem”, sabendo articular com o aluno, mantendo-se sempre informado sobre as notícias do mundo.
O aluno será em geral, um adolescente com um forte desenvolvimento da inteligência, porém esse desenvolvimento é:
“acompanhado por profundas mudanças sócio-emocionais. É hora de incertezas, de indagações sobre o sentido da vida, das mudanças hormonais que repercutem não só no corpo. Crises de identidade, comportamentos de revolta são comuns e, de certa forma, previsíveis. É também a hora dos grandes idealismos, da vontade de mudar e questionar tudo.” (Paredes; Tanus; 2000)

O desenvolvimento da inteligência é significativo, porém não vem só. Confusões emocionais, crises de identidade confunde o jovem, além da televisão e internet trazerem notícias do mundo com facilidade para esse aluno. A falta de flexibilidade no discurso do professor pode acarretar perigos. O mundo multicultural necessita formar cidadãos ativos e sem, ou pelo menos o mínimo de preconceito possível. Quando se aborda sobre mulher mulçumana, o aluno é levado a praticar o exercício da tolerância religiosa, cultural e étnica, além de refletir melhor sobre as questões de gênero da sua própria cultura.


Referências bibliográficas:
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. In:_______História nas atuais propostas curriculares.São Paulo. Editora Cortez. Ano 2005


ESPÍNOLA, Claudia Voigt. A mulher no islã. Direitos humanos violência e gênero. UFSC

PAREDES, Eugênio Coelho. TANUS, Maria Ignez Joffe . Psicologia: fundamentos da teoria piagetiana.2000. Editora UFMT.
SILVA, Eliane Moura.. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. In: ________Estudos de Religião para um novo milênio. São Paulo: Contexto. 2003. cap. 25. p.205-219. THEODORO, Jeanice. EDUCAÇÃO PARA UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO.cap 01 p.

SILVA, Marcos. FONSECA, Selva Guimarães. Ensinar história no século XXI: Em busca do tempo entendido. 2007.Editora Papirus.

FERRO, Marc. O século XX explicado aos meus filhos./ Tradução de Hortência Santos Lencastre. – Rio de Janeiro: Agir, 2008
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